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A quantificação do inquantificável

"Nem tudo que pode ser contado conta, e nem tudo que conta pode ser contado"

Albert Einstein

Dizem muitos autores que os pesos dos números pouco explicam e a leveza dos conceitos Táticos que elucidam muito. Desta forma, inicio um ponto de reflexão sobre a tendência atual de «coisificações antigas».


Desde a história clássica e mais recentemente no período pós-renascentista, a cultura ocidental ganhou uma nova forma de se ver e explicar a vida, através da ciência. A realidade vista sob o prisma do observador, segundo Popper (Mundó, 2008), conduziram tendências sociais. Pois bem, essas tendências se impregnaram profundamente em todos os contextos sociais, dando uma nova orientação logística dos nossos procedimentos no quotidiano visando planos a longo prazo, e estes pontos a longo prazo eram voltados para aspectos básicos como saúde, economia e educação.


Contudo, os pressupostos do desporto ganharam uma nova relevância a partir do século XIX, com a profissionalização de várias modalidades. No século XX isto ganhou maior preponderância com a inserção mais profunda dessa visão epistemológica no mundo desportivo. Assim, surgiram as primeiras faculdades, laboratórios, estudos, periodizações e métodos de treino.


Desde então, a visão científica mãe de todas as explicações, segundo os positivistas, impregnou o mundo do futebol com dados científicos. Nesse viés, os aspectos considerados como científicos vieram oriundos das ciências ditas “robustas”, “duras”, exatas. Assim ganharam, os números, através dos nobres métodos estatísticos, um «peso da autoridade» no seio futebolístico.


Nessa fase, em meados do século XX, se consubstanciou uma visão tecnológica que, para além de influenciar diretamente a forma de Treino influenciou diretamente por sua vez o Jogo. Assim, surgiram as medidas extremamente exatas dos tempos de treino [nesse caso, dos volumes], das durações de cada exercício, das densidades, das séries, das repetições, da quantidade de “carga” e etc. Vemos nisso, também, um forte empenho do «código oculto do industrialismo» (Pinto Lopes, 2007) fato que, só fortaleceu a imposição dos números e de processos tecnológicos inerentes a estes.


O Corpo, em simultâneo, com a emergência de teorias como a da informação e cibernética, era visto como uma máquina. As tomadas de decisões, gestos técnicos, quantidade de CP necessários para uma melhoria da contração muscular, quantidades exatas de ATP geradas por cada ciclo de Krebs e etc. Tudo era, ou ainda é matematizado para uma melhor explicação e orientação científica. O mundo num perfeito encaixe de medidas exatas, lineares, síncronas que podem ser explicadas para “gerar conforto” nos que a explicavam. Contudo, essa condição de “explicador” era uma condição difícil de se alcançar, e ainda é! Era e é preciso uma linguagem tecnocrata para, em termos de estatuto [ligados a uma questão de vaidade], se manter o controle sob a população submetida aos caprichos e explicações dos explicadores.


Pode parecer um combate à ciência, ou até uma heresia, tais afirmações, mas esta visão tem a sua legitimidade. Porque explicar conceitos que desde Poincaré tem a sua validade e infinitude parece sim um “abuso” dos próprios deterministas. Contudo, eles estão no domínio, numa visão da política científica. São os que comandam gabinetes, revistas científicas das mais renomeadas, escrevem livros, ditam regras e receitas, muitas delas que se manifestam diretamente nos treinos de futebol. Quem sair da norma desta paróquia é excomungado. E, nesse sentido de excomungação, como sofreu Martin Lutero há séculos atrás, é preciso se alertar num tempo necessário, pelo qual, se atravessa o futebol brasileiro em que estas medidas que vão desde ao Treino a análise de jogo estão um tanto exageradas. Isso se reflete, por sua vez, no termo “encaixado”, reflexo do perfeito encaixe das engrenagens, do sincronismo e, lógica exata e confortante da matemática e da geometria.


É exagerado para os hereges, nada confortante para aqueles que se sentem ofendidos por tais afirmações. É confortante afirmar que realmente, graças a estes estudos, a essas ciências e a este pensamento é que aumentamos os nossos anos de vida, nossa qualidade de vida e descobrimos curas dos mais diversos tipos. Porque isso é ainda a base da ciência moderna. E, é por isso, representa uma das infinitas maneiras de se obter sucesso não só na ciência como no futebol e por isso que se torna necessário enfatizar que não é uma cruzada contra a matematização ou a estatisquização do futebol. Afinal de contas, há espaço para muita coisa no futebol, aspecto defendido pelo conceito de equifinalidade.

Realmente, os dados estatísticos apresentados na TV são quase inúteis, segundo Tostão (2011). Projetam o jogo diretamente para um ambiente in-vitro e computadorizado. Esta visão representacionista ainda demarcadamente vigente é a mesma que forçou, von Bertalanffy a justificar sua nobre Teoria por uma ótica matemática. Nada mais inteligente, porque, como se faz com as cobras ele produziu através do próprio veneno um antídoto cultural que se estendeu desde as ciências exatas às mais moles das ciências, as humanas que, justificam seus estudos, por métodos pouco consideráveis que são os ditos qualitativos.


Todo este embasamento serve para fornecer ao leitor um pano de fundo sobre uma urgente mudança na forma como se vê este fenômeno antroposocial mais total (Maciel, 2011) que é o futebol. Na medida em que se apresentem médias, modas e medianas, vemos apenas tendências. Estas, tanto como quaisquer outras fórmulas, obedecem uma lógica linear. Entretanto, muitos se esquecem que o que está pela frente da lógica matemática é a lógica e não essa que está por de trás da matemática. Nesse viés, pode-se notar que a lógica maleável e subjetiva desde os períodos clássicos de Platão e Aristóteles, tem ainda o que esconder face às probabilidades de 99,9% de ocorrência de determinados fenômenos, desde um exame de paternidade à um pênalti batido por um artilheiro. Porque, como refere Mlodinow (2008), é impossível excluir a incerteza, temos probabilidades, e esta incerteza sempre estará presente.


Esta urgente mudança se volta para a mudança de paradigma. O Paradigma sistêmico está por aí, mas não serve para qualquer um. É feito sob medida e, é preciso uma preparação prévia. Porque o susto é grande, é como se um adulto voltasse a vestir a roupa de quando era criança. Aliás, estas são as mais favorecidas porque não estão com a cabeça recheadas de ciência, que quando atingidas pelas ciências dos adultos perdem a visão do jogo tão rico como ele é. Felizmente, ainda há rua no Brasil e através do próprio jogo e das suas subjetividades, paradoxalmente, concretas, elas aprendem jogando sozinhas, i.e., sem adultos e sem dados estatísticos.


Esta clareza na forma como alguns, poucos treinadores, dominam os aspectos táticos, são fundamentais para explicar o que os dados estatísticos não conseguem, tampouco os métodos avaliativos baseados em números. Porque, como refere Frade (2006) os testes físicos são como os biquínis, mostram tudo menos o essencial. Esta alusão serve para refletir a falta de domínio que se dá, basicamente, pela falta de uma cultura do estudo da raiz da problemática em questão, da realidade, em que haja uma contemplatividade que se pode alcançar jogando e transcendendo através da leitura e partilha de aspectos qualitativos, i.e., do jogo, que são tão simbólicos e robustos quantos os números. Infelizmente aqui no Brasil não se tolera subjetividades, e isso é provado, ironicamente cientificamente através de Gladwell (2008), um autor norte-americano. Aliás, o jogo por mais ou menos estranho que pareça para alguns deterministas, nada tem de subjetivo, é a realidade. É simplesmente a qualidade do jogo, portanto, os métodos qualitativos deveriam ser chamados de objetivos Específicos que deveriam ser conhecidos e reconhecidos como quando nós conhecemos e reconhecemos a frase “eu te amo”. Aliás, questiono, será um dia possível medir o amor? Seria esse um bom tema para os deterministas, para os Laplacianos, para os estatísticos.


Contudo as formas dos métodos estatísticos ainda pairam e explicam o macro, como o Demônio de Laplace, apresentam “o que” aconteceu, mas não explicam o micro e o “o como”. São subjetividades mascaradas de exatidões que, longe de serem totalmente inúteis, nos fornecem apenas pistas. Porém, nessas pistas só se chegam os que caminham através da lupa dos processos qualitativos, porque, ao invés de reparar na quantidade reparam nas qualidades dos processos, na sua origem microscópica que pode estar desde uma pequena decisão má tomada à forma como se operacionaliza em treino, à uma dimensão mais macro que se direciona ao Modelo de Jogo. Tais qualidades que, quando claras, depois de muito estudo e esforço para a compreensão dos aspectos táticos que manifestam padrões de jogo, se torna uma «cultura», algo que flui como a natureza, como o sangue de nossas veias (que por sinal não é medido constantemente, mas funciona sempre) e, quando uma organização se manifesta como tal, emerge uma cultura clubista, um estilo, uma linguagem Específica.


Assim, os dados estatísticos, recheados de muitíssimas informações, são uteis sem dúvida. Mas, mais úteis ainda são os dados que alcançam a profundeza dos mares qualitativos, que extravasam algo que os exatos não conseguem enxergar, que é o que os humanistas muitas vezes não conseguem explicar, mas “sentem”. E sentem como ninguém. Afinal, por mais que o processo intuitivo falhe, sempre estará presente e sempre será inevitável como a emoção (Damásio, 1994, 2000; Kahnemann, 2011). Seriam estes, também, aspectos mensuráveis estatisticamente?


Desta forma, a forma como se observa o jogo, os métodos de treino balizados por estas perspectivas analíticas, positivistas, deterministas têm os seus por quê’s, mais “por quê’s e por quem surgiram? Já foram os homens dos scoutings de muitos clubes se questionarem sobre a origem dos seus programas? Será que as origens dos seus programas foram no jogo de futebol em si ou em software’s informáticos? Assim, podemos ver que é preciso dominar uma tecnologia para ser um scounting. Dominar o jogo é uma mera paisagem. E isso infelizmente, ainda é muito corrente na ciência futebolística.


São estas questões que fazem emergir a necessidade de “qualificação” de toda a cultura futebolística, e não só a brasileira. Porque se pede que a matemática restitua o que os homens lhe deram em qualidade, pede-se que a qualidade emerja da mesma forma como dizemos para nossos entes queridos, gosto de você! São sentimentos que ninguém consegue explicar, talvez se aproximam, mas são tão profundos como o mais profundo oceano. É difícil imaginar alguém dizendo, gosto 75% de você!


Portanto, essa qualificação se passa pelo domínio dos conceitos básicos científicos específicos e Específicos de cada contexto, que parecem um paradoxo, mas dão qualidade a qualquer processo por conhecimento dos padrões qualitativos do jogo de futebol, como as noções de abertura no momento ofensivo e fecho no momento defensivo, cobertura ofensiva e defensiva, equilíbrio ofensivo e defensivo, penetração e contenção e etc. Esse paradoxo se estende porque esta especificidade futebolística emerge de um contexto que está sempre em mutação, por isso, a Especificidade de cada lócus é uma condição sine qua non para o qualificar do jogo, porque em cada contexto emerge um tipo diferente de abertura e fecho, cobertura, equilíbrio e etc., em cada contexto estas condições são mutáveis e, paradoxalmente apresentam infinitas invariantes. Entretanto, toda a mutação, todo o equilíbrio fluente do contexto leva um tempo para se adquirido como um novo padrão, um novo estado de ordem, mas este tempo só subsiste na qualidade temporal pelo qual os sujeitos envolvidos são expostos.


Assim, nessa qualidade temporal, de forma aleatória e totalmente não deliberada, emergem os Pelés, Garrinhas, e Maradonas precoces, mas qualificados pelo futebol, sobretudo o de rua, formados longe da linguagem dominante tecnocrata que ainda existe nas escolinhas, escolas e clubes, formados apenas no futebol, na sua realidade.


Portanto, essa sensibilidade futebolística nunca será dada pela exatidão estatística, e isto influencia diretamente na forma como se vê o jogo e se treina para melhorar o seu desempenho para este. Assim, enquanto se continuam a ler números e dados, alcançáveis por dias de estudos, alguns continuam a virar-se para a aprendizagem mais contemplativa que existe, que está escondida na lentidão qualificadora da observação do jogo e dos padrões emergentes de cada cultura que daí surgem.


Este é um ponto interessante de reflexão a emergência de homens dotados de inteligência de métodos notacionais e sensíveis que pouco se apoiam na bengala psicológica dos métodos exatos, nos clubes, na mídia, nos Treinos e nos departamentos de scouting de todos os clubes.


Como refere Pasolini (s.d., cit. por Cunha e Silva, 1999, pp.63):

“é melhor ser um inimigo do povo do que um inimigo da realidade”.


Rodrigo Almeida - 02/07/2013


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